MÚSICA/_CADU OLIVEIRA_

Na Bahia, em se compondo, nem tudo toca

Ou por que a “música baiana” se tornou a praga da música da Bahia.

 

Do site Wikipédia: “Monocultura é a produção ou cultura agrícola de apenas um único tipo de produto agrícola (…). Está associada aos latifúndios. A substituição da cobertura vegetal original, geralmente com várias espécies de plantas, por uma única cultura, é uma prática danosa ao solo. (…) Quando se derruba uma grande área de cerrado e planta-se, por exemplo, soja, (…) animais têm dificuldade para se alimentar, não encontram abrigos e dificilmente conseguem se reproduzir. Aqueles que sobrevivem procuram outros locais, invadindo áreas urbanas, tornando-se então presas fáceis. Por outro lado, alguns insetos encontram na plantação de soja alimento constante e poucos predadores, desta maneira se reproduzem intensamente, tornando-se pragas. Outro efeito é o esgotamento do solo: na maioria das colheitas retira-se a planta toda, interrompendo desta maneira o processo natural de reciclagem dos nutrientes. O solo torna-se empobrecido, diminui a produtividade, tornando-se necessária, então, a aplicação de adubos”.

Qualquer semelhança com o mercado das artes e do entretenimento não terá sido mera coincidência. A lógica exploratória aplicada nas lavouras é a mesma vigente na grande indústria cultural e suas filiais: a maximização dos lucros, em detrimento da variedade da produção e da sustentabilidade do sistema. Não há terrenos improdutivos nem consumidores desprezados para o grande arado da cultura de massa: a regra é fornecer a matéria-prima e seus derivados em larga escala.

Abre a rodinha_Arte de Cadu Oliveira

Tomando o mercado da música como exemplo, a analogia ganha sentido. Na Bahia, a monocultura do que se rotula por “música baiana” (termo restritivo que se refere, via de regra, à axé music e ao pagode) serviu – e serve! – para desenvolver economicamente a indústria cultural baiana e todas as suas ramificações (gravadoras, produtoras de eventos, agências de publicidade e comunicação, emissoras de TV e rádio, artistas, empresários da música etc.) e, ao mesmo tempo, relegar tantos outros segmentos do campo da música à dura subsistência. Não cabe agora a discussão sobre mérito ou qualidade, mas sim como se dão as estratégias através das quais o pagode e a axé music (produtos made in Bahia) sobrepujam outros gêneros musicais que também reivindicam o status de “música baiana”.

Nas discussões sobre a onipresença da axé music e do pagode baiano nos meios de comunicação de massa e no calendário artístico da Bahia (e do Brasil, até), sobram posições acaloradas e, a bem da verdade, preconceituosas. De todos os lados. Há os que defendem que, finalmente, a Bahia conseguiu criar para si e exportar para o restante do país e para o mundo gêneros musicais genuínos e fiéis a um determinado repertório cultural baiano. Neste caso, estereótipos não faltam sobre uma sonoridade, um público-alvo e um gosto “baianos”. Qualquer crítica a este fenômeno é tachada de discriminatória, elitista, sulista e até racista. Para estes, o povo, soberano, decide o que consome, e a oferta atende a essa demanda.

Por outro lado, há aqueles que questionam essa suposta genuinidade, uma vez que, cada vez mais, as novas produções em axé e pagode se distanciam de gêneros musicais – aí sim, defendem – “verdadeiramente baianos”, como o samba-reggae, o ijexá e o próprio samba, e incorporam elementos variados, sobretudo da genérica e variada música pop. Há, ainda, os que argumentam que a onipotência da “música de carnaval” se deve mais à oferta ostensiva e invasiva desse repertório do que, propriamente, a um consumo consciente baseado na possibilidade de livre escolha. As posições em contrário são, geralmente, classificadas como alienadas ou alienantes. Em resumo, segundo este raciocínio, no mercado da música o povo consome o que está em maior visibilidade nas prateleiras, quase sempre de qualidade duvidosa.

Uma das artimanhas para a sedução de grandes audiências é o forjamento de um gosto coletivo. Para além daqueles elementos simbólicos intrínsecos ao produto cultural que possam evocar públicos com ele identificados, há estratégias utilizadas principalmente no marketing e na comunicação de massa que visam à formação e manutenção de um público que consome, para além da obra, os discursos em torno dela. É o eterno dilema do ovo e da galinha: a hegemonia da axé music e do pagode baiano se deve à adesão de grossas fatias de consumidores ou, ao revés, esta adesão é um fenômeno obtido através do maciço (e massivo) investimento do business cultural? A resposta mais adequada – e mais complexa – talvez seja que esses dois vetores se afetam mutuamente e são ainda influenciados por outros.

Enlarguecer_Arte de Cadu Oliveira

Não se trata de justificar um patrulhamento acerca do que as pessoas ouvem, mas sim de resgatar o direito que elas têm de terem acesso a toda uma produção musical baiana (feita por e para baianos) que não mais quer ser etiquetada como “alternativa”. O mercado, todos sabemos, não existe para atender a direitos, mas para suprir necessidades que, quase sempre, ele próprio cria. O mercado só entende o recado quando expresso em cifras nos balancetes. A incumbência de tratar a cultura como uma esfera social, e não apenas como um campo de exploração econômica, é – e tem de ser! – do Estado, através de políticas públicas que preservem e fomentem a diversidade cultural. E o Estado só entende o recado quando a sociedade civil se manifesta e se posiciona, política e eleitoralmente.

O consumo de todo e qualquer tipo de música é garantido hoje, dizem, graças principalmente ao acesso cada vez mais amplo à internet. De fato, é na rede – ela mesma parcialmente franqueada pela indústria cultural – que muitos segmentos da música encontram seu espaço de divulgação, comunicação com o público e comercialização de produtos. É na rede, curiosamente, que vemos que os nichos de mercado, diferentes e espalhados, se somados, não são lá assim tão minoritários (talvez, ao contrário) frente aos públicos cativos das tradicionais mídias de massa, como a TV, o rádio e os impressos. O mercado, não nos enganemos, já está de olho nesses nichos também.

 

Cadu Oliveira é jornalista, graduado pela FACOM/UFBA. Nas horas vagas, atua e roteiriza. É editor deste blog.

Cadu Oliveira é jornalista, graduado pela FACOM/UFBA. Nas horas vagas, atua e roteiriza. É editor deste blog.

Um pensamento sobre “Na Bahia, em se compondo, nem tudo toca

  1. Crítica muito pertinente, meu caro. Há tempos que o espaço musical ofertado pelos meios de comunicação de massa da Bahia está aberto às estes poucos gêneros musicais. Nada que venha destoar dos sons protuberantes do axé, do pagode, do arrocha e do forró são recebidos com alardes pela grande mídia baiana. Muito disso ligado a indústria do carnaval (desse carnaval fatiado, estigmatizado e propagado). É bem verdade que as músicas ditas como “alternativas” reclamam o seu espaço e encontram maior visibilidade via internet. Claro que o mercado já cresce os olhos para esse público-alvo, no entanto, os canais de acesso ainda não estão plenamente abertos.

    Parabéns pelo texto.

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